O presente texto apresenta uma mescla entre um relato de experiência no processo de reconhecimento de si, de autorreconhecimento da pertença a um povo. Assim, o texto tem como objetivo relatar, em primeira pessoa, parte do processo de autorreconhecimento, e nos efeitos que esse processo implica, que é quase sempre ser alvo de críticas fundamentadas em uma caracterização muito difundida do perfil que um indivíduo indígena deve ter, onde deve estar, como deve atuar e o que deve buscar.
Me chamo Quéren Souza Manchineri, sou indígena pertencente à etnia Manchineri. Como os Manchineri são divididos em clãs, a minha família faz parte da Comunidade Rodrigues Alves, localizada em Assis Brasil, terra Indígena Mamoadate. A minha ancestralidade vem através de minha mãe, Alzeniris dos Santos, que obteve essas raízes por intermédio de meu avô, Francisco Alves Manchineri, uma liderança crucial para a valoração da cultura e costumes de meu povo. Apesar da convivência dela com os nossos parentes, ela não optou por permanecer na comunidade, apenas visitava. Eu, quando criança, não tinha conhecimento da dimensão em pertencer às raízes que fazem o Brasil ser o que ele é: diversificado culturalmente, ecologicamente e linguisticamente.
A minha atuação quanto indígena se iniciou de forma tardia. Apesar de garota, externalizei em mim essa sede de pertencimento. Desenvolvi meus estudos que eram relacionados aos povos originários acreanos. Dei a devida atenção à comunicação de meus parentes que moram na aldeia. E, quando iniciei a minha graduação, me incluí em um Programa que a Universidade dispõe para os estudantes. O meu foi o Grupo Pet - Conexões de Saberes e Comunidades Indígenas. Adquiri muitos conhecimentos através desse Programa Tutorial; para além, produzi conteúdos mediante trabalhos acadêmicos relacionados à ancestralidade de meu povo, principalmente sobre a literatura indígena brasileira. Isso me trouxe satisfação, consciência e desejo de mais entendimento.
Como uma indígena atuante, a minha trajetória foi penetrante no sentido de exclusão, devido ao preconceito enraizado. Apesar da minha aceitação quanto indígena (a meu ver, isso era o suficiente), comecei a sofrer desprezo ao me identificar como uma, tanto para não indígenas quanto para os indígenas. Afinal, o que é ser indígena sem estereótipos? A presente questão faz suscitar a necessidade de considerar aspectos da Convenção Internacional OIT - 169, que reconhece a importância dos direitos indígenas como amparo legal ao autorreconhecimento, destacando também a não-discriminação para o desenvolvimento pleno e diverso, segundo o costume de cada um.
A partir desse conceito, gostaria de destacar a caracterização de uma mulher indígena não aldeada, ou seja, que não reside na sua comunidade original. Foi por meio da busca por minhas raízes que encontrei a autoaceitação, superando as críticas ao nosso modo de vida que antes eram uma barreira para aceitar minha identidade como mulher indígena. Em seu livro "Metade cara, metade máscara", Eliane Potiaguara questiona: “O que faço com a minha cara de índia?”. Essa pergunta ressalta os desafios de ser indígena em uma sociedade com um passado sangrento e que muitas vezes desconsidera a diversidade. Inspirada por essa indagação, pergunto: Como me declaro indígena sem a aparência estereotipada de “índia”? Ressalto que o "despertar da alma" ocorre através do conhecimento ancestral e que a necessidade de provar a identidade para o mundo reflete uma aceitação interna ainda não resolvida.
Foi por meio da busca pelo conhecimento ancestral que descobri minha identidade neste mundo. Apesar da não aceitação por parte de certos espaços e pessoas, não podem negar para mim o meu direito e origem ancestral. Sou Quéren Souza de Castro Manchineri, uma mulher indígena que abraça sua identidade, mesmo quando muitos têm vergonha de revelar quem realmente são. E por abraçar minha identidade é que registro no presente texto que a ancestralidade é algo único de cada ser humano. Os troncos ancestrais para alguns é motivo de orgulho e para outros, motivo de vergonha. Para mim, é característica de orgulho, pois a identidade que carrego em meu sangue vem da resistência. Nós, indígenas, por muito tempo sofremos invasões em nossos territórios originários, fomos vendidos e nos forçaram a abdicar de praticarmos nossos costumes. Fomos muito maltratados e ainda somos por autoridades governamentais que não enxergam a nossa valorização e o nosso cuidado com a mãe natureza, a nossa especificidade. O Brasil, desde muito antes da ‘’descoberta’’, sempre foi um lugar de diversidade cultural e povos do mundo, e, depois da “descoberta”, também foi acrescentado mais diversidade. Então carregamos o sangue de muita gente, muita gente resistente e sofrida. A diversidade nos define e o respeito pelo diferente sempre deveria nos guiar em uma convivência digna. Da mesma forma, a autoaceitação de si deveria ser algo respeitado por todos. Mas não se conduz dessa forma, visto que sempre há o que julgar.
Se eu sou uma indígena em contexto urbano, estou pensando contra os ideais de meu povo, se eu sou uma indígena aldeada, sou vista como alguém primitiva (termo pejorativo que descarta o modo de vida de pessoas por ser diferente do padrão) por viver para a floresta.
A realidade é: viver em uma circunstância ou outra não me faz ser menos ou mais indígena. O processo de autoaceitação deve ocorrer dentro do interior de cada um, independentemente do local em que esteja. Em mim, senti como se Omama (criador da floresta) estivesse me re-criando, um ser disposto a aceitar sua origem, sem medo dos julgamentos. À vista disso, demonstro coragem para dizer ao mundo a minha trajetória. Eu defendo o meu povo e tenho orgulho de ser quem eu sou, pois ‘’se as pessoas não tiverem vínculo profundo com a sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos’’ (Krenak, 2020).
A sociedade brasileira é diversa, e a sua diversidade é a riqueza maior. Assim, reconhecer o Brasil como um país resultado de confrontos, encontros diversos, pode fazer com que todos sejam respeitados pela sua ancestralidade, pela sua origem. Então conhecer a si próprio, sua origem, sua pertença, irá ajudar no processo de atuação no mundo. Assim como uma árvore só atinge sua plenitude se tiver raízes fortes, nós também: reconhecer as nossas raízes nos fará mais fortes.
REFERÊNCIAS
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Editora: Companhia de Letras, 2020.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. 3. ed. Rio de Janeiro: Grumin Edições, 2019.
BRASIL. Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002. Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, de 1989. Disponível em: https://portal.antt.gov.br/conven%C3%A7cao-n-169-da-oit-povos-indigenas-e-tribais. Acesso em 07 de ago de 2024.
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